terça-feira, 14 de junho de 2016

O parto do Anjo da Morte!

"-Si deve far coraggio maggiore.
Martin Bora estava sentindo dor demais para dizer que entendia.

- Dobbiamo pulire le ferite.
Com dor demais para dizer que entendia isso também. 

Coragem. Era preciso limpar as feridas. O sangue pulsava nas suas pálpebras, em rápidos lampejos no brilho cego dos olhos hermeticamente fechados e no fundo da boca, onde seus dentes estavam cerrados com toda a força, outra batida cardíaca varria um tempo frenético na sua cabeça.

- Coraggio, coraggio. Tente aguentar firme.

Sob sua língua, uma pocinha de saliva foi se formando, que ele deixou auumentar até o ponto de precisar engolí-la. Quando ergueram a maca, a agonia no seu braço esquerdo intensificou-se tanto que todo o corpo se encolheu. Ele só conseguia respirar, com a parte superior do peito, de maneira convulsiva, como quem precisa chorar ou gritar.

Estavam colocando-o na mesa da sala de emergência. Tirando-lhe as botas. Sua perna esquerda pareceu rasgar-se com a remoção do couro rígido, como se estivessem lhe arrancando o osso do joelho. Luzes explodiram sobre ele, vozes humanas vieram de um ponto muito distante acima dele, até ele, penetrando nele.

O sangue jorrava enquanto os médico cortavam suas roupas, mas Bora não entregou os pontos, ficou cada vez mais rígido, inflexível e desesperado, tentando resistir à dor. Tinha que lutar contra essa sensação - como se alguém conseguisse combatê-la - mesmo quando o lado esquerdo de seu corpo parecia esmagado por um imenso torno e não havia esperança de escapar, a não ser que arrancasse o braço e a perna no processo. Sua mão esquerda, completamente estraçalhada e jorrando sangue, ia aos poucos lhe devorando a vida - pulmões, estômago, ossos - tudo aparentemente pulsando do corte no fim de seu braço, uma mistura vermelha repugnante, composta do que até então preenchia seu corpo.

Abriram-lhe as calças da farda do exército. Mãos frenéticas penetraram o tecido manchado de sangue da sua virilha, apalpando-lhe a coxa e o joelho. Seu pescoço ficou rígido, quando ele fez força para erguer as costas.

-Seguram-no, mantenham-no deitado! - disse uma voz - vai ter que mantê-lo deitado, enfermeira.

Com as articulações contraídas, como se sofresse uma convulsão, Bora combateu a dor e não se deixou ficar deitado. Não conseguia engolir e nem podia dizer que não conseguia. Quando alguém lhe deu água - ele sabia que sua boca estava aberta, porque o ar saia dela em espamos - ela voltou, escorrendo pela garganta, molhando-lhe as faces.

Em seguida, eles procuraram tratar seu braço esquerdo. Ele se preparou para o que viria a seguir: um paroxismo de dor que o fez torcer a boca e tremer descontroladamente, mas sem soltar um grito. Tateou, procurando a beirada da mesa. Não queria gritar. Com o pescoço flexionado para trás, incapaz de fechar a boca - era difícil, dificílimo - ele lutava, batia a cabeça contra a superfície dura, mas não gritava.

- Coloque alguma coisa sob a cabeça dele, enfermeira, ou ele vai se machucar ainda mais.

As mãos que lhe escavavam a carne do braço, da virilha e da coxa aceleraram e depois pararam. Posteriormente recomeçaram de forma lenta. De forma bastante lenta. Escavando, puxando, separando. Nascer talvez fosse assim, uma luta nauseante e desesperada para sair, em meio a um lugar repleto do cheiro opressivo de sangue, um cheiro de abatedouro e uma dor incomensuravelmente forte.

Ele ia ceder. Se forçasse um pouco mais a passagem, iria se tornar um natimorto, mas morreria se não tentasse.

- Mantenham-no deitado!

Então, alguém puxou sua mão, que estava agarrada à beirada da mesa, à força e a segurou com firmeza.

Bora sentiu vontade de chorar pelo consolo que aquele gesto lhe trouxe, como se tudo aquilo fosse seu parto da morte, livrando-se das mãos e do ventre do Anjo Negro. Parou de lutar e de repente começou a se libertar do torno.

As luzes o cegavam, mas ele via gente trabalhando naquela colcha de retalhos rubra com instrumentos cintilantes e chumaços de algodão.
Para fora, para fora. Ele ia conseguir.

A mão que apertava a sua o levou ao limiar da agonia, o fez avançar e a dor foi extrema, insuportável, na hora da passagem. Bora gritou apenas uma vez, quando seu nascimento para fora da dor arrancou o que restava de sua mão esquerda."

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